A correria do dia a dia nos impede de reparar em uma série de detalhes ao longo da vida, da beleza de um céu de outono até detalhes de textura, sabores e aromas de um alimento.
Em tempos de quarentena por causa da pandemia do novo coronavírus, uma boa opção para organizar os pensamentos, emoções e comportamentos é a técnica do mindfulness. Ela tem sido definida como o “prestar atenção no momento presente, de forma intencional e sem julgamento”. Em outras palavras, é um estado de consciência em que a pessoa ativamente escolhe prestar atenção no momento, adotando uma postura de abertura e aceitação dessa experiência.
Diminuição nos índices de ansiedade, de estresse e de sintomas depressivos, menor reatividade emocional e maior capacidade de regulação dos sentimentos, maior flexibilidade e abertura para mudança, melhora na capacidade atencional e aumento do bem-estar são alguns dos ganhos ao praticar a técnica. Mas é possível adotar o mindfulness para crianças?
A especialista ressalta que impactos nos relacionamentos interpessoais também já foram demonstrados em adultos. “As pesquisas sugerem que a prática de mindfulness está associada a um aumento da capacidade de responder construtivamente a eventos estressantes que ocorrem nos relacionamentos, a uma melhora na comunicação de sentimentos, bem como a uma maior habilidade de identificar as próprias emoções e as emoções dos outros”, afirma.
Pais procuram cada vez mais mindfulness para crianças
Estar dentro de casa com os filhos o tempo inteiro exige certa atenção e paciência dos pais. Dependendo da faixa etária, a atenção é diferenciada, mas a tensão é inevitável.
Diante da situação inusitada de pandemia e isolamento social impostos, mães e pais estão em busca, na internet, de informações sobre práticas lúdicas de mindfulness para crianças.
“Os pais perderam suas redes de apoio e acumularam ainda mais funções – além de responder às demandas profissionais, precisaram assumir o papel de ensinar conteúdos escolares aos filhos, monitorar a atenção deles nas aulas online, cozinhar, arrumar a casa, brincar com as crianças, cuidar dos próprios pais idosos, monitorar a própria saúde mental, dentre tantas outras coisas. Muitos pais não estavam preparados para várias dessas funções, ainda mais tendo que lidar com todas elas ao mesmo tempo. Várias crianças também não”, ressalta Tauane Gehm.
A psicóloga lembra que, para as crianças, ficar em casa trancadas o tempo inteiro, pode ser uma situação de sofrimento. “Para muitas delas, tem sido um desafio, por exemplo, ficar na frente do computador por horas, mantendo o foco nas aulas online, com interação reduzida com os colegas. Nesse cenário, tenho ouvido muitas queixas parentais relacionadas a uma preocupação com as habilidades atencionais dos filhos. Embora devamos sempre levar em consideração a preocupação dos pais, é importante lembrar também que as crianças estão tendo que se adequar a uma demanda atencional para a qual não foram treinadas anteriormente”, avalia.
Além disso, o convívio familiar intenso em uma situação tão estressante para todos, como é a quarentena, pode gerar conflitos familiares mais frequentes e fortes. “Tenho observado, em muitas famílias, aumento dos conflitos entre irmãos, entre casais e entre pais e filhos.
Também é importante salientar que, assim como boa parte dos adultos, muitas crianças estão apresentando sinais de sofrimento frente ao contexto atual e isso tem sido motivo de muita preocupação para os pais”, acrescenta.
Para Tauane Gehm, o crescimento nas buscas pela internet por esse tipo de técnica revela o sofrimento das famílias. “É natural que, com isso, as famílias passem a buscar ferramentas que ajudem a lidar com o sofrimento e os demais desafios dessa fase. O mindfulness pode ser uma boa ferramenta, mas ele não é uma saída mágica para tudo. É preciso estar atendo à persistência e à intensidade das dificuldades e, em muitos casos, a melhor saída é buscar ajuda especializada de profissionais da saúde”, diz.
Algumas dicas podem te ajudar na busca por conteúdo lúdico para crianças:
– ‘Brincando de mindfulness’, de Patrícia Calazans: Uma caixinha com 50 cartas, contendo exercícios para praticar a atenção plena com crianças;
– Livro Quietinho feito um sapo – exercícios de meditação para crianças (e seus pais), de Eline Snel, Editora Rocco: Explica o mindfulness de forma simples e apresenta exercícios legais para se fazer com os pequenos;
– Aplicativo Lojong: Apresenta o programa “Mindfulness em família”, com práticas para os pais fazerem junto com os filhos.
Exercícios e práticas lúdicas de mindfulness para crianças
Com a ajuda da psicóloga infantil Tauane Gehm, selecionamos algumas práticas lúdicas de mindfulness para crianças e ajudar você a lidar melhor com o estresse da quarentena.
1 – Mindful eating
As crianças são conduzidas a comer um alimento (uma maçã, por exemplo), prestando atenção a todo o processo relacionado ao ato de comer.
Como conduzir a atividade:
“Apenas observe o alimento. Qual é a cor dele? E o seu formato, como é? Preste atenção à sua textura, à sua temperatura, a como ele preenche a sua mão. (pausa) Agora, sinta seu cheiro. Leve o alimento até bem perto do seu nariz e respire fundo, prestando atenção ao aroma que entra pelas suas narinas. Preste também atenção ao que acontece dentro da sua boca conforme você sente o cheiro. (pausa) Leve agora o alimento até sua boca e, antes de mordê-lo, preste atenção à sensação que fica na sua língua e nos seus lábios ao se aproximarem dele. Você consegue sentir a textura? A temperatura? (pausa) Agora, quero que você feche seus olhos e, bem devagar, morda o alimento. Apenas uma mordida. O que acontece dentro de sua boca? Qual é o saber que você observa? Há um único sabor ou várias nuances de sabores? Os sabores mudam? E seus dentes e sua língua, como eles interagem com esse alimento? (…) Tente perceber a sua vontade de engolir e, então, engula e preste atenção a como o alimento desce na sua garganta. (…) Se quiser, dê outra mordida, mantendo a atenção a tudo o que está acontecendo”.
2 – Prática da alga marinha
Esta técnica pode ser usada em situações em que a criança está muito agitada, levando-a a prestar atenção aos seus movimentos.
Como conduzir a atividade:
“Imagine que você é uma alga marinha. Cada pedacinho do teu corpo faz parte dessa alga: tua cabeça, teu tronco, teus braços, tuas pernas… E, como uma alga marinha, você está dentro do mar, preso ao chão, sentindo o movimento da água. Agora, seu corpinho e seus braços vão começar a balançar conforme as águas do mar se movimentam. Quero que você imagine que a correnteza está muito forte, que o mar está muito agitado e comece a balançar seu corpo bem rápido, fazendo movimentos rápidos com os braços, a cabeça e as pernas. Balance o mais rápido que você puder! (pausa) Ótimo! Parece que o mar está mesmo muito agitado! Agora, o mar está mudando! A correnteza está começando a diminuir e seus braços e corpo estão se adaptando a esse mar mais calmo. Como estão os teus movimentos? Mais calmos também, não é mesmo? Balance seu corpo e seus braços bem devagar, então. Cada vez mais devagar… Cada vez mais devagar, até parar… No seu tempo… Você está indo muito bem! (pausa) Tente perceber como você se sente quando a água está assim, calma, quase sem movimento. Feche os olhos se tiver vontade e sinta a água tranquila ao redor do seu corpo por alguns instantes. Perceba como está sua respiração, como está seu corpo, como estão os seus pensamentos. (pausa) Quando você tiver vontade, pode abrir novamente os seus olhos”.
3 – Respiração com ursinho de pelúcia
É preciso pedir que a criança se deite de barriga para cima, de forma confortável. Peça que ela coloque um bichinho de pelúcia ou outro objeto lúdico na barriga dela.
Como conduzir a atividade:
“Eu quero que você puxe todo o ar que conseguir pelo seu nariz. Perceba que, conforme você puxa o ar, o bichinho de pelúcia vai lá em cima. Agora, bem devagar, solte todo esse ar pela boca e observe como o bichinho de pelúcia desce, chegando cada vez mais próximo do chão. Muito bem! Puxe o ar e veja como ele sobe. (pausa) Agora, solte o ar e veja como ele desce. (pausa). Tente prestar atenção a esse movimento. (pausa) Talvez você perceba que começou a pensar em outras coisas. Está tudo bem. Quando isso acontecer, no seu tempo, apenas volte a prestar atenção à sua respiração e ao ursinho de pelúcia”.
Na avaliação da psicóloga Tauane Gehm, prestar atenção é como um músculo: precisamos de treino para conseguirmos fazer exercícios mais longos e diversos. “Caso a criança consiga manter o foco por poucos segundos, não tem problema. Podemos, nos primeiros dias, começar com exercícios curtos, às vezes de 20/30 segundos e, aos poucos, aumentar até chegar a minutos. Distrair-se faz parte do processo e é importante conduzir a criança a aceitar essa mudança de foco, sem julgamentos, voltando a prestar atenção sempre que possível naquilo que o exercício propõe”, pondera.
4 – Prática dos pensamentos
A proposta aqui é a de fazer a criança criar, na mente, um ambiente em que possa sentir diversos estímulos e sensações.
Como conduzir a atividade:
“Quero que você imagine que está em uma praia bem bonita! Sinta o cheiro da maresia. Perceba o tempo como está. Sinta o vento agradável em seu rosto, sinta a areia em seus pés, sinta a temperatura agradável no seu corpo. Olhe por um tempo para as ondas do mar: cada uma delas surge devagarinho, cresce e depois se desfaz, indo embora… agora, preste atenção aos teus pensamentos. Imagine que cada um dos seus pensamentos são uma dessas ondas: eles surgem na nossa cabeça e depois, apenas vão embora. Faça isso com todos os pensamentos que vierem à sua cabeça: transforme-os em uma onda que surge, cresce e, então, se desfaz, se diluindo no restante do mar”.
Tauane Gehm explica que essa última prática pode ser feita de outras formas, caso a criança não goste de praia. “Por exemplo, ela pode imaginar que está em um carro, na estrada, e cada um dos seus pensamentos é transformado em um outdoor. Conforme o carro anda, esse outdoor fica maior, maior, maior. Aí, passamos por ele e seguimos viagem e o outdoor vai ficando cada vez menor”, conclui.
Exercícios simples de mindfulness para crianças e seus pais
Existem outras práticas de mindfulness, menos estruturadas, que podem ser feitas em parceria entre pais e filhos e serem igualmente potentes, como explica a psicóloga Tauane Gehm. “Por exemplo, é possível deitar no chão, olhando para o céu, e prestar atenção aos formatos das nuvens. Converse com seu filho sobre que figuras, objetos, movimentos podem ser observados. O que você vê? O que a criança vê? Pais e filhos também podem sentar juntos e conversarem sobre os sons do ambiente – aos poucos, é possível perceber o estalar dos móveis; ou ainda, quantos tons diferentes há em uma sirene que passa pela rua; ou o canto dos passarinhos que estavam presentes e ninguém reparava”, exemplifica.
Cozinhar em família também pode ser uma boa estratégia, segundo a especialista. “Cada vez que alguém experimentar a comida, tentará observar o tempero e, então, atentar para a quantidade de sal presente. A cor, o cheiro, a grossura da casca dos legumes, o tempero, o calor que a comida tem quando sai direto da panela… tudo isso pode ser observado enquanto cozinhamos”, ressalta.